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A diluição das concepções de gênero no vestuário: a expressão e subversão do masculino

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    Mostra Revista
  • 26 de ago. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 2 de set. de 2021


Reportagem por: Giulia Ribeiro e Maria Luiza Rosa


Para entender como as ideias de gênero estão sendo dissolvidas dentro do vestuário, primeiro é interessante entender quando e de que maneira surgiram no que conhecemos como Ocidente. Antes do século XIV, os vestuários masculino e feminino eram muito semelhantes, até que uma mudança de concepções se desdobra em um cenário no qual definem-se silhuetas específicas para cada sexo: curto e ajustado para o masculino, longo e justo para o feminino. Parte desta distinção deve-se às influências morais da sociedade patriarcal, que colocava a figura masculina e, consequentemente, o seu vestuário como superior.


Imagem 01: Ilustração medieval. Reprodução via Pinterest.

Imagem 02: Remingus van Leemput. Henrique VII, Elizabeth de York, Henrique VIII e Jane Seymour, 1667. Óleo sobre tela; 88,9 x 99,2 cm. © Royal Collection Trust



Desde que surgiu, a moda é associada ao poder e ao prestígio, além de refletir o espírito de seu tempo. Durante a Idade Moderna, foi uma importante ferramenta de distinção entre classes sociais e de reforço do status quo. O exagero e a opulência do vestuário eram manifestações da sociedade de corte, que concentravam na figura do rei todo o poder de um Estado e, por extensão, o máximo de luxo e ornamentação possível.

Percebem-se algumas tentativas de simplificação da vestimenta, mas nenhuma é muito duradoura. É somente no Iluminismo que inicia-se uma lenta e contínua mudança no traje masculino rumo à algo mais sóbrio, sério e opaco, por conta do novo ideal burguês de masculinidade criado na época, que colocava tudo o que é masculino como honesto, simples e racional, portanto, superior. Por outro lado, o que era associado ao feminino era tido como inferior, desconfortável, tolo e exagerado.


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Imagem: Eugène Delacroix. Retrato do Barão Schwiter, 1827. Óleo sobre tela.



Fazendo um rápido salto para o século XX, encontra-se uma sociedade na qual os papéis de gênero estão muito bem definidos, dando continuidade a ideia de homem simples e honesto, cujo vestuário está estagnado. Enquanto a moda feminina refletia os anseios por liberdade e autonomia, a moda masculina mantinha-se conservadora seguindo os preceitos do que um homem deveria ser, levando em consideração o machismo estrutural.


Entretanto, é possível perceber ao longo do século algumas movimentações que desafiam esta dinâmica binária de gênero e seus reflexos no vestuário. Essas transgressões estavam ligadas em maior ou menor grau à androginia, que pode ser definida como a mistura de elementos masculinos e femininos gerando algo de caráter ambíguo. O ser andrógino é aquele que não se conforma com as características pré definidas de gênero, flutuando sobre o espectro.


Um exemplo tímido acontece dentro do movimento hippie, que materializou seus ideais de liberdade, pacifismo e anticapitalismo em um estilo despojado, colorido e unissex. Homens e mulheres compartilhavam o modo de se vestir, utilizando calças boca de sino jeans, batas, cabelos longos e acessórios com aspecto artesanal.


Imagem 01: Moda hippie nos anos 1960. Reprodução via Pinterest

Imagem 02: David Bowie em seu figurino Anjo da Morte, 1973. Foto: Hulton-Deutsch.



Nos anos 1970, o glam rock levou a ideia de androginia ao grande público. Misturando o rock progressivo com o kitsch, temos um estilo que traz a tona o caráter narcísico, hedônico e andrógino. Nomes como Marc Bolan, Elton John, Mick Jagger, mas principalmente David Bowie e seu alter ego Ziggy Stardust tornaram as barreiras entre os gêneros mais sutis. Sua abordagem é importante, pois aproxima a moda masculina da feminina (ou da antiga concepção de moda masculina). Seus figurinos eram justos, provocantes, exagerados, estampados e brilhantes, também eram comuns sapatos plataforma, maquiagem ou pintura facial, cortes de cabelo estilo mullet e acessórios decorados.


Sua contribuição é importante pois inclui símbolos femininos para além do vestuário feminino, algo pouco aceito por conta da estigmatização criada sobre esses elementos durante o período iluminista. Adotar estes signos significa transgredir a identidade viril e moderna criada.


Graças às subversões ocorridas nos últimos séculos, cria-se espaço para novas abordagens a respeito das concepções de gênero e novas formas de expressão. Nota-se muitos artistas utilizando o vestuário para refletir sua identidade e sua não conformidade com a perspectiva tradicional de papéis de gênero. Dentro desta lógica, é interessante analisarmos alguns exemplos de personalidades que encabeçam essa mudança.


Lil Nas X


O rapper norte-americano Montero Lamar Hill, conhecido profissionalmente como Lil Nas X, vem ganhando notoriedade no cenário musical desde o lançamento do single country rap "Old Town Road" em 2019. Não apenas o sucesso de seus hits, mas também seu estilo ousado e inusitado fez com que Nas X deixasse sua marca na indústria. O cantor impacta ainda mais ao apresentar-se como um homem negro assumidamente gay, rompendo paradigmas dentro do meio rap, ainda considerado um âmbito predominantemente heterossexual, e tornando-se uma figura representativa para a comunidade LGBTQIA+.


Imagem 01: Lil Nas X Andrew Lipovsky / NBC / NBCU Photo Bank via Getty Images

Imagem 02: Lil Nas X vestindo UGG. Foto por Danielle Levitt.



Conhecido por "explorar territórios inexplorados na moda masculina" e "redefinir a expressão da masculinidade", o artista descreve seu estilo como "Risky, vibrant, camp.", conquistando muitas pessoas no mundo da moda e se tornando uma importante figura no cenário fashion.


Ternos com cores vibrantes ou estampas, botas e chapéu de cowboy, acessórios, peças neon e itens geralmente associados ao vestuário feminino tornaram-se marcantes no estilo do artista. Com apenas 22 anos, Lil Nas X vem inspirando muitas pessoas a se libertarem dos padrões de vestuário impostos socialmente e vestirem o que mais os representa.


Imagem 01: Lil Nas X no tapete vermelho do Grammy Awards 2020. Foto por Axelle / Bauer Griffin | FilmMagic

Imagem 02: Lil Nas X no tapete vermelho do BET Awards 2021 (Foto por Paras Griffin/Getty Images for BET)

Imagem: 03: Lil Nas X em performance. Foto por Miikka Skaffari / Getty Images


Måneskin


Outro exemplo é o grupo de rock italiano Måneskin. Criado por jovens de visual rebelde, o quarteto começou a carreira tocando em troca de moedas na rua — mais precisamente, na agitada Via del Corso, no coração de Roma. E daí deu um salto impressionante rumo ao estrelato. Galvanizou a Itália ao vencer a edição de 2021 do festival Eurovision, um dos maiores eventos culturais de competição musical da Europa.


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Imagem: Divulgação / Reprodução.



O quarteto italiano formado pelos jovens Damiano David (vocal), Victoria De Angelis (baixo), Thomas Raggi (guitarra) e Ethan Torchio (bateria) vem conquistando cada vez mais espaço na indústria, não apenas por suas músicas mais famosas e virais como “Zitti e Buoni” e “Beggin”, mas também por seu visual glam rock resgatado dos anos 70 e seu estilo que desafia padrões de gênero.


Com sua estética extravagante e desconstruída, a banda adota trajes justos, botas de salto alto, maquiagem marcante, unhas pintadas e diversos acessórios.


Defendem a ideia de que a moda é um instrumento para se expressar e ser único, não devendo haver julgamento porque a moda deve ser cega em termos de gênero. O vocalista Damiano David explicou que considera a moda "como um meio de auto expressão e de dar mais poder às performances".


Imagem 01: Damiano David ( Reprodução | Instagram )

Imagem 02: Banda Måneskin ( Reprodução | Instagram )

Imagem 03: Performance da banda Måneskin na competição musical Eurovision 2021 © AFP 2021 / Various sources / Sander Koning

Imagem 04: Måneskin/ Divulgação



Impactando ainda mais no cenário europeu, a banda aborda como temáticas de suas letras o estilo de vida boêmio, paixões melancólicas, a ideia de diversidade e liberdade. Essas ideias não estão presentes apenas nas letras, como também nos palcos. No final de junho, o vocalista e o guitarrista se beijaram no palco, durante uma transmissão na TV pública polonesa. Não foi por acaso. A Polônia vive uma onda de protestos pelos direitos LGBTs no país. “Procuramos combater preconceitos e estereótipos tanto na música quanto na vida pessoal. Da escolha da roupa ao grau de sexualidade ”, disse Victoria de Angelis em uma das entrevistas.


Ney Matogrosso


Dentro do contexto nacional temos o cantor Ney Matogrosso, considerado andrógino por combinar simultaneamente, em suas performances, características estereotipadas como masculinas e femininas. O artista sul-mato-grossense atraiu uma geração que já não se identificava mais com a tradição e que possuía uma identidade pós-moderna: fragmentada, desconectada, multilinguística e simultânea.


Em entrevista à Revista Veja, Ney fala sobre a forma como as pessoas o viam no palco: “De mil maneiras, homem, mulher, marciano, bicho, pomba-gira, louco, divino, tudo. Eu quero que cada um continue vendo em mim o que bem entender. Quero ser tudo o que as pessoas desejam que eu seja” (SALES, 2019). Assim, meio-homem-meio-mulher, Matogrosso, que assumiu sua homossexualidade ao completar 18 anos, ajudava a quebrar estereótipos de gênero e sexualidade, ajustando-se ao período de contracultura que marca os anos 1970.


Gazelle


Por fim, temos o piauiense Paulo Monteiro Araújo, mais conhecido por seu alter-ego Gazelle, que tornou-se uma personalidade clubber conhecida internacionalmente. Comissário de bordo por muitos anos, Gazelle muda-se para Nova York e lá passa a ser reconhecido por seu estilo avant garde, combinando cores, texturas, maquiagens extravagantes e acessórios para expressar sua personalidade e sentimentos. Além de performer e drag queen, criou a “Gazelland”, uma publicação para personalidades criativas da cena noturna dentro da comunidade lgbtqia+ de cidades como Londres, Nova York e São Paulo.


Imagem 01: Gazelle. (Foto: Divulgação)

Imagem 02: Gazelle com uma de suas produções. (Foto: Divulgação)


Referências


ASTUTO, Bruno. Época. Gazelle, ícone da noite paulistana e nova-iorquina, chega ao Rio para lançar documentário. 2020. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/colunas-e-blogs/bruno-astuto/noticia/2015/07/gazelle-icone-da-noite-paulistana-e-nova-iorquina-chega-ao-rio-para-lancar-documentario.html. Acesso em: 25 ago. 2021.


BARROS, Patrícia Marcondes. A contracultura, o glam rock e a moda andrógina nos anos 70-80. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE, 3. 2017. Anais… Florianópolis. Disponível em: http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/viewFile/652/408. Acesso em: 20 ago. 2021.


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GALVÃO, Pedro. Estado de Minas. Maneskin resgata o glam rock setentista no mercado dominado pelo pop. 2021. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2021/05/30/interna_cultura,1271356/maneskin-resgata-o-glam-rock-setentista-no-mercado-dominado-pelo-pop.shtml. Acesso em: 08 jul. 2021


HERMAN, James Patrick. Variety. Lil Nas X as Fashion Icon: The Rapper Runs Down Some of His Top Looks. 2020. Disponível em: https://variety.com/2020/music/news/lil-nas-x-fashion-style-1203480704/. Acesso em: 08 jul. 2021.


HOLLANDER, Anne. Sex and Suits: the evolution of modern dress. New York: Alfred A. Knopf, 1994. 212 p.


LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 294 p.


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SALES, Sueleide Silva Pereira et al. O papel do figurino na construção da persona do cantor Ney Matogrosso. Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 61-82, março. 2019. Disponível em: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/wp-content/uploads/2019/03/241_IC_ArtigoRevisado.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.


SUZIKI. Izabela. Steal the Look. Desculpa Harry, Mas o Damiano David do Maneskin é Nosso Novo Crush. 2021. Disponível em: https://stealthelook.com.br/desculpa-harry-mas-o-damiano-david-do-maneskin-e-nosso-novo-crush/. Acesso em: 08 jul. 2021


 
 
 

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