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Nostalgia e Escapismo: recriando a memória através da indústria cultural

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    Mostra Revista
  • 2 de dez. de 2021
  • 19 min de leitura

Atualizado: 16 de dez. de 2021


Reportagem: Maria Gabriela Bosa

Em uma maneira de explorar a aura do passado com intuito de produzir cultura e comercializar o tempo, a lembrança, ou melhor, a memória, encapsulada e viva, se transforma em bem de consumo para gerações posteriores. Exemplo disto, são produtos como séries baseadas em clássicos das décadas anteriores; estilos que retornam para as ruas no dia-a-dia; e divas do pop que facilmente se assemelham às divas do disco, entre outros.


Durante os anos 2010, houve um abundante retorno do que constituiu a cultura popular das décadas de 70, 80 e 90, em uma sensação de nostalgia que se transformou em um acessório estético - por vezes, intrínseco à identidade do indivíduo. O passado tornou-se, a nível cultural, personalizável e objeto de uso.


A nostalgia, porém, foi avistada sob diversas luzes ao longo dos tempos.


Para Gary Cross, ela se tornou mais complexa e sutil devido às mudanças tecnológicas e econômicas, trazendo novas possibilidades de viagens e significados de tempo.


O autor sustenta que as guerras e conflitos armados, porventura, sejam os maiores catalisadores da nostalgia como um fenômeno. Por efeito das disputas territoriais e conflitos diretos em movimentos de conquista e dominação, ocorreram ondas migratórias com o intuito de escapar da violência, o que causou traumas nestes grupos em diáspora, interferindo em seus costumes e estilo de vida. Se estabeleceu, portanto, uma cultura de retorno ao passado glorioso - ainda que não pudesse ser restaurado.


Como consequência, histórias sobre vidas anteriores a este acontecimento foram repassadas entre gerações como uma herança comunal. A partir desses momentos de fragmentação entre o passado e o presente, Cross (2015) coloca a nostalgia em quatro categorias: comunitária, familiar, fashion e de consumo.


A primeira se manifesta durante os momentos de ruptura, atravessando avanços tecnológicos e demais conflitos. Remete ao cenário de busca pelo passado glorioso, pelo que era antes de ser obrigado a modificar seus hábitos e modos de vida devido a fatores externos e fora de controle.


A segunda, apesar de se assemelhar a primeira, se dá em um maior envolvimento relacionado à memória familiar, com a finalidade de preservar o passado e o afeto da família.


A terceira classificação é a “fashion nostalgia”, da qual está relacionada à moda e os costumes de uma determinada época em que o indivíduo se identifica, porém não pertenceu. Baseado nisto, o autor indica que o capitalismo apresenta uma importante função na manifestação da nostalgia, uma vez que esta passa a estar diretamente relacionada ao consumo, alcançando os diversos grupos da sociedade em maior escala do que as anteriores.


Por fim, a “consumed nostalgia” compreendida enquanto um produto direto do capitalismo tardio - em um momento pós-1945, quando havia o que o autor chama de “era de ouro do capitalismo”. Marcado pelo aumento excessivo do consumo e no avanço desenfreado da tecnologia, o capitalismo tardio fez com que a sociedade entrasse em um modo frenético de produção - um dos efeitos deste acontecimento é a nostalgia através do consumo. Nela, está presente um indivíduo nostálgico por aquele momento “antes de tudo isso” - geralmente infância ou juventude - e supre essa falta, consumindo produtos que aludem a esta época. A nostalgia consumível, ao contrário das demais, é extremamente pessoal e individualista, pois ela existe a partir da experiência e das percepções do próprio indivíduo.

NOSTALGIA


A nostalgia pós-moderna está diretamente relacionada ao consumo - por vezes excessivo - e a afirmação de uma identidade através deste. Este fenômeno ocorre devido ao fato de diferentes gerações encontrarem algo que parecia melhor anteriormente - ainda que isto signifique relevar ou ignorar partes negativas do passado.


A década de 1960, por exemplo, entregou ao mundo tanto os Beatles como o ápice da Guerra do Vietnã (1955 - 1975) e o acirramento de conflitos geopolíticos que levariam ao clímax de uma da maiores tensões políticas da história pós-moderna, a Guerra Fria (1947 - 1991), a qual se agravou na década de 1980 ao surgir ameaças nucleares de ambos os lados.


Desse modo, a nostalgia de consumo se dá por efeito de estruturas sociais e um ritmo de vida que reforça o comportamento de que ‘consumir é essencial para o ser humano’. Logo, consumir o passado é uma maneira de possuí-lo, embora o prazer ao realizar tal ato seja momentâneo, sem de fato preencher o vazio deixado pelo que era. Em vista disto, o indivíduo irá em busca de mais objetos de consumo para, além de satisfazer seus laços com o passado, se afirmar como membro ativo da sociedade, uma vez que consumir é participar.


“A magia da satisfação do consumidor faz da nostalgia um grande negócio.” (CROSS, 2015, p. 6, tradução própria).

Sob outro prisma, Svetlana Boym (2008) enuncia que a nostalgia se manifesta em duas formas: a restaurativa e a reflexiva. A primeira se dá por meio de uma visão associada à identidade nacional, a partir de influências em aspectos políticos e sociais de uma nação. Está atenta em reconstruir os “monumentos do passado” (BOYM, 2008, p. 76), com restauração de tradições de um passado nobre e glorioso, a exemplo dos slogans de campanha de Donald Trump (“Make America Great Again”) - eleito para a presidência dos Estados Unidos em 2016 - e de Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” ), lema emprestado de um grupo de militares da Ditadura Militar (1964 - 1985).

Já a segunda manifestação, chamada de reflexiva, está ligada às visões pessoais do passado, com sentimentos individuais. Por tender a surgir logo após ou durante um período de agitação social e política, esta nostalgia se manifesta através da cultura popular nas músicas, filmes e demais veículos de entretenimento, como uma forma de escapismo.


A nostalgia reflexiva se refere mais à visão que o indivíduo tem do passado e o que deseja para o presente, do que com a realidade dos fatos em si. Neste viés, é possível identificar aspectos desta nostalgia em conteúdos de cinema e televisão, por exemplo, com os remakes live-action dos clássicos da Disney.


Em vista disso, por Svetlana Boym não estabelecer regras relacionadas a possibilidade de as duas nostalgias coexistirem, conclui-se que a atual onda de resgate presente, seja produto de um momento na história em que há um grande processo de restauração e uma forte necessidade de reflexão-escapismo. Em decorrência deste hibridismo, é em meio a este cenário que a nostalgia reflexiva se transforma em um fenômeno cultural, uma vez que o desgaste e demais sentimentos são anestesiados pelo escapismo proporcionado pela cultura pop, já que esta recorda diferentes épocas - em uma tentativa de distrair o indivíduo do presente, enquanto o critica pelo mesmo:


A nostalgia reflexiva acalenta fragmentos de memória estilhaçados e temporaliza o espaço. [...] pode ser irônica e bem-humorada. Revela que a saudade e o pensamento crítico não se opõem, pois as memórias afetivas não absolvem a compaixão, o julgamento ou a reflexão crítica. (BOYM, 2008, p. 92, tradução nossa).

IDENTIDADE E SUPERMERCADO CULTURAL


Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo, inicia seu livro A Identidade Cultural na Pós Modernidade (2006), com a afirmação de que o sujeito pós-moderno está em ascensão. A partir disso, o livro discorre sobre a trajetória da identidade ao longo de transformações científicas, econômicas e políticas que alteraram as estruturas sociais no decorrer da história.


O autor sustenta que este sujeito pós-moderno é inconstante e sem essência, estando em constante convergência com o meio e suas estruturas, modificando-se constantemente e causando modificações a estas estruturas. Sob este prisma, de acordo com Stuart Hall (2006), o indivíduo possui dentro de si múltiplas identidades coexistindo.


Assim, assumimos que o sujeito pós-moderno pertencente ao contexto da globalização, na qual tem suas fronteiras geográficas e de contato expandidas, indo muito além do lugar físico e material. Como consequência, inicia-se um fluxo cultural entre diferentes tempos e sociedades, como forma de busca por imagens, estilos de vida, entre outros, em uma comunicação que, atualmente, se dá por máscaras do museu imaginário da cultura global humana a partir de referências passadas. (JAMESON, 1959)


À medida que as trocas se intensificam e o consumo das imagens, estilos e hábitos do que é estrangeiro se torna mais comum, mais as identidades se desvencilham da sua essência anterior, de natureza efêmera, e passam a orbitar livremente, consumindo e aderindo o que for apresentado. Formando, então, o que Hall chama de “supermercado cultural” (2006).



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I’m all lost in the supermarket, I can no longer shop happily. I came in here for the special offer: guaranteed personality.” (THE CLASH, 1977)



Lost in the Supermarket” foi lançada em 1977, no álbum London Calling (figura 10), sendo o terceiro trabalho de estúdio do grupo britânico The Clash. Embora a letra pouco tenha a ver com as temáticas desta reportagem, já que possivelmente é um protesto contra consumismo e alienação causada pelo mesmo - uma vez que a banda é uma referência no meio punk - ela é aqui citada por desenhar uma analogia tão facilmente.




Stuart Hall brinca com o conceito de um supermercado cultural, um ambiente lotado de referências e elementos prontos para serem levados e consumidos. É a partir desses pequenos “bens” que o indivíduo forma uma identidade - ou as várias identidades que ele possui em si. O autor ainda brevemente enuncia sobre as suas percepções quanto a identidade pós-moderna nos contextos de cultura e consumo: à medida que somos influenciados por imagens, pelos lugares externos, pela mídia e pelos sistemas de telecomunicação, as nossas identidades se tornam mais desvinculadas do espaço, tempo e tradições; passam a “flutuar livremente” (HALL, 2006).

A CULTURA POP


O início do novo século ficou marcado pela inserção de processos tecnológicos nos mais diversos segmentos, principalmente nas indústrias culturais tendo o ramo musical como o principal “laboratório” (BUSTAMANTE, 2010) para as novidades que estariam por vir. Desde a popularização do MP3 até a consolidação do streaming, a música sempre esteve presente como um importante produto cultural inclusive em redes sociais como o Instagram e o TikTok.


A cultura pop, entretanto, nasce dentro do contexto da indústria cultural. Os símbolos criados em forma de entretenimento e posteriormente disseminados em diferentes produtos culturais como a música, proporcionaram a estruturação de um grande negócio sempre em renovação e adaptável às evoluções tecnológicas e midiáticas, que devido ao alto consumo, migrou para o ciberespaço, no qual uma gama de novas possibilidades tem se apresentado. Entre estes novos caminhos, encontra-se a própria noção cunhada de aesthetic - ou a estética.


Definido como algo belo e harmonioso, prazeroso de se observar, as aesthetics assim como demais elementos nativos na Internet, não obtêm origens específicas, porém especula-se que tenha surgido a partir de uma extensão do vaporwave - movimento musical e visual surgido em meados de 2010. De acordo com Gabriel Monteiro (2017):


Trata-se de uma manifestação artística dos jovens do século XXI que faz uma crítica à mercantilização desenfreada da cultura ao produzir música com aquilo que nunca se imaginaria, como áudios de comerciais da Pepsi e mixagens grotescas de músicas pop comerciais. (MONTEIRO, 2017, p. 1)

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A estética atrelada ao vaporwave mistura elementos de diferentes épocas e contextos, como estátuas neoclássicas, logomarcas de grandes corporações, ícones de programas de computador, frases escritas com kanjis e efeitos de VHS, geralmente sobre um fundo colorido em degradê. Por ter um visual simples e de fácil replicação, o vaporwave popularizou-se dentro da Internet e logo se tornou em algo além de sua origem: foi transformado em meme e, posteriormente, utilizado como adjetivo, na forma de atribuir valor ao que o indivíduo está referenciando.


Comumente, ao relatar que algo faz parte de sua aesthetic, o indivíduo esta tomando-o para si, como quem diz “isto faz parte da minha identidade”.


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A cultura da aesthetic cresceu em plataformas que possuem a publicação de imagens como sua principal função, como é o caso do Tumblr e do Pinterest. Dentre estas, o Tumblr se destaca por ter uma larga parcela de adolescentes entre seus usuários, que transformaram o aesthetic em uma forma de autoafirmação. A imagem ocupa um papel formativo nas identidades dentro do contexto do pós-modernismo e da cultura pop, é a partir do contato com esta que uma pessoa se expressa e se constrói no século XXI - processo que é intensificado com a utilização constante de redes como Facebook, Instagram, Snapchat e, mais recentemente, o TikTok nas atividades diárias de um indivíduo.


As plataformas citadas utilizam a imagem como um elemento central nas suas dinâmicas sociais e a forma como o indivíduo se apresenta nelas, e em demais plataformas, é um indicador identitário de ‘quem é’, ‘do que consome’ etc.


O vaporwave, por sua vez, trouxe consigo uma noção de resgate e ressignificação de iconografia do passado, e embora a noção de aesthetic tenha se dissociado do movimento que a originou, levou consigo a premissa de recontextualizar imagens de outros períodos, mas sem necessariamente envolver as críticas ao consumismo e ao capitalismo tardio contidos na mensagem inicial. De certa forma, a palavra voltou ao seu significado primário de admiração do belo, mas este belo agora é incorporado ao indivíduo - na maneira como se observa e apresenta aos demais.


A discussão de estética e redes perpassa o fenômeno nostálgico que se manifesta na cultura pop atualmente. Embora não haja uma delimitação para o que pode ou não ser considerado aesthetic, há uma tendência de continuar o movimento em direção ao passado iniciado no vaporwave. Acessórios, roupas, modas, sons e imagens estão de volta aos holofotes da cultura, mas em larga escala e vindos de diversos momentos da história moderna e pós-moderna. Sob luzes neons, ao som de synth pop, trajando roupas largas (provavelmente compradas em um brechó) e emulando um misto de cinismo e melancolia, a juventude de 2020 herda o resultado de dez anos de retorno à beleza do passado em detrimento dos caminhos do futuro.


A sociedade está atravessando um momento em que a nostalgia e o seu consumo saíram de nicho de mercado para adentrar em um fenômeno de moda, música e estilo de vida, no qual as referências se misturam, recebem novos nomes, são incorporadas aos conteúdos consumíveis e se tornam, portanto, um produto do presente.

A DÉCADA DA NOSTALGIA


I just wanna go back, back to 1999, take a ride to my old neighborhood. I just wanna go back, sing ‘Hit me, baby, one more time’. Wanna go back, wanna go” - 1999, Charlie XCX e Troye Sivan.

Desde o começo da década, é possível perceber uma cultura de resgate do passado dentro das redes sociais, impulsionada principalmente por artistas da música pop – de Lana Del Rey e seu american dream sessentista à Dua Lipa e seu manifesto sobre o que é a “nostalgia do futuro”.


A cultura pop e o consumidor estão longe de ter uma relação unilateral em que uma parte obedece a outra de forma passiva. Embora o pop opere em uma lógica de produção capitalista, visando o consumo, ele não está inteiramente destituído de originalidade e inspiração.


Por mais que seja notório devido ao seu visual e premissa, o pop é o lugar de encontro de todas as coisas, estabelecendo um lugar de conforto. É onde os iguais se reúnem para celebrar – e, para surpresa de muitas pessoas, talvez, seja o detentor de uma enorme diversidade. É um belo espelho do presente, a imagem de todas as imagens – e é por isso que o pop é a melhor representação da estética da nostalgia ao longo da década de 2010.


A música pop da década de 2010 se distingue drasticamente da de décadas predecessoras pelo fato de não ter uma identidade definida, com tendências indo e vindo com certa rapidez. Mudanças notáveis são a ascensão do hip-hop ao posto de gênero musical mais popular nos Estados Unidos , a popularização da EDM (electronic dance music, popularmente conhecida como música eletrônica) e ritmos latinos como reggaeton, e a menor presença do rock e r&b nas principais paradas musicais. A música pop se tornou, ao longo da década, mais lenta e menos dançante, com letras abrangendo outros tópicos como ansiedade, depressão e sentimentos de não-pertencimento, convergindo com uma abordagem mais minimalista em sua execução e menos rasa em seus temas.


Diante disso, é possível concluir que o pop perdeu um de seus distintos aspectos: a expansividade. Como resultado, houveram diversas faixas com batidas minimalistas e vocais baixos dialogando sobre questões mais sensíveis e íntimas do que os numerosos singles exibicionistas que abriram a década. A música pop saiu da pista de dança, estabelecendo-se em um espaço mais privado, funcionando como a trilha sonora de apoio de momentos mundanos, um escapismo inconsciente alimentado pelas playlists sem fim e um sentimento constante de apatia.


Entretanto, apesar do pop ter sido, de certa forma, engolido pela morosidade na maior parte da década, houveram artistas na direção oposta, produzindo trabalhos mais destoantes do clima geral de melancolia e letargia: como o caso do After Laughter (2017), da banda Paramore, que encobre letras sobre depressão e solidão com synths dançantes e videoclipes coloridos; ou do recém-lançado “Chromatica” (2020) de Lady Gaga, que trata sobre a batalhas internas da cantora buscando conforto, estabilidade emocional enquanto recria uma noite em 1990 com house music e nenhum descanso ao longo dos quase 45 minutos de duração.


Figura 01: Encarte After Laughter, Paramore.

Figura 02: Encarte Chromatica, Lady Gaga.

Juntando o aspecto estético aos aspectos sonoros e musicais, percebemos uma onda de nostalgia e resgate dentro da música pop - synthpop, house music, disco, cultura clubber, bubblegum pop do começo de 2000. Como debatido previamente, pode-se explicar a ressurgência pela ideia da nostalgia reflexiva e do escapismo, visto que desde meados de 2010, há um segmento da pop music que vem consistentemente revisitando e transformando a música do passado para o contexto em que vivemos ao longo dos últimos anos.


Dessa maneira, em meio a inúmeros lançamentos – em sua maioria aclamados pelo público e crítica especializada – há um que se destaca como o representante da nostalgia moderna – ou futurística: transitando por todas as décadas da música pop sem deixar de lado o que vem pela frente: o Future Nostalgia, o segundo álbum de estúdio de Dua Lipa, que melhor capturou o fascínio e a fixação pela cultura do passado recente.


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Figura 01: Capa Future Nostalgia, Dua Lipa.

FUTURE NOSTALGIA


Nascida em Londres, no dia 22 de agosto de 1995, Dua Lipa é filha de imigrantes kosovares - seus pais mudaram-se para o Reino Unido em 1992, buscando refúgio da Guerra Civil lugoslava. Criada na Inglaterra, a cantora muda para a capital do Kosovo, Pristina, com a família aos 11 anos, quando o país declara independência – onde morou até os 15, até retornar à capital inglesa sozinha em busca de uma carreira musical.


A cantora iniciou sua carreira por meio da internet, na qual postava covers de artistas como Nelly Furtado e P!nk no YouTube, até ser contratada pela gravadora Warner Bros Music em 2013, lançando seu primeiro single, New Love, em 2015.


A partir de então, Dua entra em turnê pela Europa no ano seguinte e lança mais singles, como Hotter Than Hell. Entretanto, apenas com single New Rules (2018) a cantora conseguiu atingir círculos maiores e fora da internet, a colocando em uma posição de maior destaque. O videoclipe viralizou no YouTube, fazendo com que New Rules subisse nas paradas, sendo a primeira entrada da cantora no top 10 da Hot 100, alcançando o sexto lugar.


Em 2019, Dua Lipa revela o nome de seu segundo álbum por meio de um post do instagram em que se lia “Future Nostalgia”. Posteriormente, em março de 2020, com três singles e uma música promocional lançadas, o álbum vaza na internet em torno de duas semanas antes do lançamento previsto.

Em meio a tensões e ansiedades por efeito do início da pandemia e dos lockdowns ao redor do globo, a cantora decidiu que o álbum, portanto, seria lançado antecipadamente. Frustrada por terem estragado a estreia e preocupada com a possibilidade do público rejeitar suas músicas animadas e dançantes em um período tão crítico e obscuro, Dua Lipa anunciou que Future Nostalgia seria oficialmente lançado no dia 27 de março de 2020.


Todavia, apesar dos obstáculos e receios, Future Nostalgia se mostrou como um sucesso, atingindo quarto lugar na Billboard 200 e permanecendo no top 10 até a terceira semana após ser lançado, fora bem recebido tanto pelos críticos quanto pelo público e seus fãs, afinal, uma fantasia nostálgica era o que se fazia necessário diante do cenário distópico e incerto em que o mundo se encontrava devido a pandemia da COVID-19. Com isso, diversas salas de estar e quartos se transformaram em pistas de dança pelo mundo todo.


Ao todo, Future Nostalgia possui onze faixas e apenas uma delas fala explicitamente de nostalgia – a faixa-título, que abre o álbum – e ainda assim, não é sobre o sentimento em si, é em forma de manifesto: “Future Nostalgia é o nome”. É uma afirmação no que diz respeito ao inédito direcionamento da carreira de Dua Lipa, uma vez que, enquanto o primeiro álbum apresenta uma abordagem minimalista descrita pela cantora como darkpop - músicas com caráter triste e temáticas obscuras-, este segundo álbum funciona como uma playlist de festa, com sua euphoria de início ao fim, mesmo com músicas críticas como no caso de “Boys Will Be Boys”.


Em continuidade, além de ser um divisor de águas de sua carreira, o álbum é uma representação do momento em que a cultura pop está inserida, com escapismo mais vigente do que nunca na sociedade e a nostalgia sendo utilizada como refúgio em uma viagem no tempo.


Ainda que o conceito de Future Nostalgia tenha sido concebido em 2018 e o seu desenvolvimento no ano seguinte, pode-se concluir que a ideia da cantora era que suas músicas fossem ouvidas em festas e demais eventos ao invés de em casa com a família e amigos através de videochamadas - mesmo que os singles "Don't Start Now” e “Physical” conseguiram tempo ao ar livre por terem sido lançados um pouco antes da quarentena entrar em vigor.


O terceiro single, “Hallucinate”, entretanto, devido ao ápice da pandemia em que se encontrava, obteve um videoclipe animado, onde é possível observar alusões à estética escapista e psicodélica dos anos 60.



Ainda que as letras das músicas adentrem temáticas genéricas do pop como amor e relacionamentos, é na estética e apresentação visual que o álbum ganha vida e conquista seu público.


Segundo Gary Cross, a nostalgia em si não remete de fato a uma determinada época, mas ao que o indivíduo tem conhecimento e sente falta dela, e em detrimento disto, é possível observar, a partir deste conceito, a maneira como o álbum se desenrola, uma vez que não se prende a uma época específica. Há referências disco, acid jazz da década de 90, new wave; inspirações retrô na dinâmica da estrutura melódica dançante, onde é possível identificar elementos de Gloria, Olivia Newton John, CeCe Peniston, Spice Girls, Em Vogue e Madonna. E videoclipes, seguindo esta mesma linha, transitam entre décadas do século XX, a exemplo de “Hallucinate” que trouxe animações psicodélicas e desenhos que remetem aos anos 60, como mencionado previamente e da festa espacial de “Levitating” em uma clara referência e releitura da corrida espacial e avanços tecnológicos dos anos 70.


“Physical” com seu visual cinemático, colorido e atmosférico semelhante aos utilizados por thrillers psicológicos das décadas de 80 e 90, além da nítida alusão ao hit de Olivia Newton John em seu segundo videoclipe, onde há presença de Dua Lipa e seus dançarinos brincando com o duplo sentido contido no refrão “let’s get physical”.



Em suma, há um balanço entre as influências e releituras nos aspectos visuais de Future Nostalgia, em que essa diversidade não ofusca as diferentes referências e conceitos que estão inseridos. De fato, são estes componentes que definem a identidade do álbum enquanto produto, tem-se portanto, o que Guy Debord reconhece como “visualidade do espetáculo”, devido a esta carga imagética na representação e abordagem apresentada.


Esta abundância estética e nostálgica do passado, está em concordância com o momento da cultura pop atual - especialmente no que concerne o sujeito pós-moderno que esteve trancafiado em sua residência por quase dois anos e, como resultado, busca refúgio desta realidade em que se encontra - ainda que momentânea - para si, em uma constante criação de narrativas e universos, interpretações da realidade e ressignificação de elementos do passado - seja por meio da música pop ou de demais produções culturais - e se configura, por fim, em um escapismo nostálgico - uma tendência mercantilizada que reflete o estado de espírito da sociedade atual.


Dentro deste conceito, a produção audiovisual da música “Levitating” traz em seu hipertexto, uma nostalgia da era disco, com uma estética retro futurística e utópica.


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A narrativa do videoclipe inicia com Dua Lipa deitada no capô de um carro clássico da década de 70, observando as estrelas em um deserto. Flashbacks e o presente da cantora são intercalados nos primeiros segundos do clipe, em uma demonstração do desejo por diversão. Em seguida, uma estrela cadente cruza o céu e lhe concede um pedido.


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Com um vestido cintilante da Versace ao invés das roupas vislumbradas no início, Dua Lipa cruza um colorido portal que a transporta para sua fantasia enquanto a música atinge o primeiro refrão.


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Entrando um híbrido de foguete com elevador, onde há presença de uma pista de dança no lugar do chão, a cantora junto de duas dançarinas performam o refrão “venha dançar comigo, estou levitando” em direção a próxima parada onde o rapper DaBaby assume os vocais em um verso dissonante do tema visto na música até então, uma vez que enquanto Dua canta sobre “o romance que aconteceu na hora perfeita”, DaBaby retrata a não-reciprocidade - “ironicamente, eu os dei meu amor e eles acabaram me odiando”- e a ausência de sorte no amor com “tenho lutado forte pelo seu amor e estou perdendo a paciência, preciso de alguém para abraçar”. Apesar da dualidade lírica entre os músicos, a maneira como os versos são entregues pelo rapper faz com que eles se encaixem na atmosfera festiva da música.

A estrutura narrativa do videoclipe segue de uma maneira simples, com o foguete-elevador realizando paradas para mais pessoas subindo a bordo em direção ao desconhecido destino final à medida que a música vai se desenvolvendo.


As referências ao passado são praticamente todas visuais, indo da ambientação e iluminação remetentes às boates e discotecas das décadas de 70 e 80, bem como a caracterização e figurino dos dançarinos dos quais vão desde o uso de roller skaters ao de ternos coloridos a lá Embalos de Sábado a Noite (1978). A própria Dua Lipa usando Versace representa alguém pronta para uma festa atrás do velvet rope da Studio 54, ao mesmo tempo que traz o simbolismo e conceito de uma noite na discoteca: o globo espelhado.


Estas alusões e detalhes compõem a narrativa da intertextualidade e hipertextualidade de Levitating como um todo, em conjunto com o figurino e demais elementos visuais.


A alteração de cenário e figurino é o que demarca o refrão visual, visto que ocorre o final da viagem intergaláctica e adentra uma festa no espaço sideral. A pista de dança branca é ampla e com o inusitado formato de um anelar que orbita ao redor de uma Dua Lipa - vestida agora de Mugler - dançando no centro da festa.



Em uma clara referência ao objeto de fascínio da cultura pop da década de 70, a temática espacial se faz presente no cenário atmosférico do videoclipe com a cantora no centro, como se fosse um planeta, enquanto a pista de dança se configura de forma semelhante aos anéis de Saturno, em uma metáfora visual que frisa a época em que está se referenciando.



Em conclusão, o atraente artifício de Future Nostalgia, está composto em sua maioria nas construções visuais, sonoras e estéticas das músicas e videoclipes, a exemplo de Levitating.


Ainda que a letra seja um tanto genérica, as vagas alusões ao conceito espacial, como as menções de galáxias e a Via Láctea, adentram possíveis interpretações de metáforas e hipérboles relacionadas ao amor de Dua por seu parceiro.


O intertexto da música, por outro lado, acontece nas escolhas dos produtores, em como a música soa similar aos grandes hits do disco – ou ao que o público interpreta deste gênero, em uma associação direta com a uma música pertencente ao fim dos anos 70, enquanto nos videoclipes são os aspectos e representações visuais que remetem esta ideia de passado, os configurando como os principais vetores de consumo da canção.


Além do refúgio para outra galáxia e amar ao ponto de levitar, Levitating manifesta o que durante a quarentena menos esteve possível: o encontro.


Em uma entrevista para revista Vogue, Dua Lipa descreve o vídeo como um “sonho disco”, um contexto facilmente vislumbrado na produção, a partir da narrativa presente, de cruzar um portal para adentrar um foguete em direção ao espaço - existe uma visão de fantasia próxima a um sonho delirante durante o videoclipe. Em contrapartida, há também a ideia de escapar para uma realidade paralela onde é possível estar perto um dos outros, longe das problemáticas vigentes no último ano.

Embora não haja esta alternativa de subir a bordo de um elevador para a Via Láctea efetivamente, o escapismo dentro da fantasia criada pela arte proporcionada, faz com que seja viável se transportar para um universo alternativo.


Future Nostalgia reflete de maneira excelente o desejo de escapatória, glitter e glamour compartilhado por toda uma geração que, talvez, esteja apenas buscando se divertir.


Se você quer fugir comigo, eu conheço uma galáxia e posso lhe levar para uma volta. Tive uma premonição de que entramos em um ritmo onde a música não para por nada. Glitter no céu, glitter nos meus olhos, brilhando do jeito que eu gosto. Se você acha que precisa de um pouco de companhia, você me conheceu na hora perfeita. (LIPA, 2020, tradução minha).

Referências


HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Ed. 11. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.


BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. Nova Iorque: Basic Books, 2008.


CLASH, The. Lost in the Supermarket. Londres: CBS Records, 1979.


JAMESON, F. A lógica cultural do capitalismo tardio In: ____________. (org.).PósModernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Ed 2. São Paulo: Ática, 1997.


BUSTAMANTE, E. A digitalização integral das indústrias culturais. Revista Observatório Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, n. 09, 2010.


KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia - estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. Bauru. EDUSC. 2001.


LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 1999.


MONTEIRO, Gabriel. “Está Tudo em Suas Mãos”: O Desenvolvimento do Movimento Vaporwave na Internet. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 19. 2017, Fortaleza.


CROSS, Gary. Consumed Nostalgia: Memory in the Age of Fast Capitalism. Nova Iorque: Columbia University Press, 2015.


FUENTENEBRO, Filiberto; VALIENTE, Carmen. Nostalgia: a conceptual history. History of Psychiatry. Madri, p. 404-411. 13 nov. 2014.


 
 
 

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