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Moda e Decolonialidade: introdução ao pensamento crítico no escopo do 'fazer' e 'ler' moda

  • Foto do escritor: Mostra Revista
    Mostra Revista
  • 9 de set. de 2021
  • 6 min de leitura

Reportagem por: Nicolas Santos

“E o melhor de tudo: eu que vou para a semana de moda de Paris!”


A frase dita pela personagem Emily Charlton (Emily Blunt) à Andrea Sachs (Anne Hathaway) contextualizada no filme ‘ O Diabo Veste Prada’, no intuito de causar inveja, revela algumas das narrativas de poder,s do cenário de moda mundial que é reproduzido à anos, e que se mostra presente na maior parte das produções audiovisuais que abordam a área. Primeiro, o fato de a noção de “moda” e “superioridade” estar ligada a um ideal eurocêntrico, ditado pelos países detentores dos títulos de “criadores de moda”. Em segundo, a constante reprodução desse mesmo ideal através dos veículos de comunicação de moda pelo mundo todo, que continuam realizando a manutenção desse discurso construído historicamente. Será que a moda advinda da Europa, ou do circuito tão conhecido Paris - Milão - Nova Iorque é a única possível? O que isto nos diz?


Quando falamos de moda, muitas vezes nos detemos acerca dos itens de vestuário, diminuindo o conceito à um objeto, e esquecendo todas as construções narrativas que ela traz. Para entender melhor o que aqui discorremos, devemos entender a moda, ainda que de forma sucinta, enquanto um fenômeno social e cultural, que estabelece relações entre os indivíduos, bem como representa uma forma de expressão dentro de um contexto sócio-histórico-cultural. Estas relações, por sua vez, formaram discursos criados à partir da visão daqueles que detêm o poder, seja pela formulação da moda na França de Luís XIV, seja nas revistas de moda da atualidade que replicam padrões de vida e percepções de mundo que não condizem com nossa realidade.


Quando tocamos nestas relações, e na hierarquia que a construção das mídias e conhecimentos de moda apresentam, tentamos elucidar o fato de que as percepções sobre essa grande área são enviesadas e influências pelas experiências e interesses dos produtores de conteúdo. Assim, entendemos a própria produção de conhecimento e de narrativas enquanto sistemas que podem gerar forças de dominação e subjugar a dialética e multiplicidade de conhecimento e vivências. Como coloca Elias Thomé Saliba, pesquisador e doutor em História pela USP, em seu artigo ‘Perspectivas para uma historiografia cultural’, vertente de estudo que leva em consideração a contextualização da própria produção de saberes,


“A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as práticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.”


O que isto converge com a moda? Bem, podemos notar que a partir do momento em que nos debruçamos sobre, e unicamente, sobre as relações de moda e desenvolvimento da indumentária contextualizada no hemisfério norte e com foco na Europa, segregamos à margem uma enorme parcela de conhecimento, vivência e cultura. Assim, acabamos por reiterar continuamente as ideias da superioridade da produção de moda dos “grandes polos" mundiais, do mercado de luxo que não temos acesso, e da aura especial e criativa das maisons, em detrimento de uma invisibilização da pluralidade rica em insurgências.



Um pensamento pós-colonial e decolonial é imprescindível no atual cenário, de forma que possamos superar as lógicas segregacionistas à nós historicamente relegadas, uma vez que o decolonial, também, se vê intrinsecamente ligado à um pensamento e posicionamento antirracista. E esta é uma das problemáticas que atinge, também, os cursos de moda pelo país, que ao decorrer de sua grade leciona de forma à unicamente produzir as logísticas postas, ao invés de confrontá-las criticamente. Segundo Hanayrá Negreiros, pesquisadora e mestre em Ciência da Religião pela PUC SP, em coluna à revista eletrônica de jornalismo científico ‘Com Ciência’,


Se voltarmos nossas atenções para o Brasil, podemos constatar que o vestir, como campo de conhecimento, vem sendo abordado ainda de maneira limitada nas faculdades e cursos de moda pelo país. É recorrente encontrar pessoas que estudam moda nos cursos superiores reclamando que a moda que é ensinada é a de origem branca, quase sempre europeia e que faz jus a corpos quase sempre magros e igualmente brancos, como universal e única moda possível, representando o norte global e recusando as epistemologias do Sul, parafraseando Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses.”.



Corroborando com a pesquisadora, o bacharelando e também pesquisador Felipe Fonseca cunha, em seu ensaio para Mostra Revista, disponível também em seu Medium, intitulada “Por que os estudos de moda devem pautar raça?”, a necessidade de olharmos através de uma nova perspectiva e lógica para o ensino de moda no país. Segundo Felipe, em pensamento decorrente do cruzamento de autores,



“Silvio Almeida complementa em seu livro que “a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas”. Portanto, se a Moda constitui o ethos da sociedade moderna e contemporânea, sociedade essa que se movimenta através das relações simbióticas de poder e aparência, seus estudos precisam conter as discussões que tensionam o campo social, como gênero, classe e raça, por uma perspectiva interseccional.”.”


Outro grande nome que vem pautando esse estudo interseccional e emancipado da moda é a professora e pesquisadora Laura Béltran-Rubio, que a partir de seu contexto enquanto estudiosa colombiana, buscou na perspectiva latino-americana o caminho para estudar e dissertar acerca das narrativas de moda. A pesquisadora utiliza suas redes sociais, seu blog e “Império de la Moda”, que faz parte de seu P.h.D para produzir conteúdo relevante e de fácil acesso sobre o assunto, bem como é colaboradora em projetos como os sites ‘Culturas de Moda’ e ‘The Fashion and Race Database’. Laura tem como enfoque em suas pesquisas as relações que a moda estabelece nas adaptações da “moda européia” que se fundiram com elementos indígenas tradicionais de vestuário, dentro do contexto da América Hispânica, bem como sua representação em artes visuais dentro do período colonial. Pauta, também, a importância de se ter estudos publicados em espanhol, e não só em inglês e francês, línguas comumente usadas na área.


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Imagem: Madame Leroy, 2016, Fabiola Jean-Louis


Inclusive a plataforma 'The Fashion and Race Database', fundada por Kimberly Jenkins, em 2017, é um dos projetos mais interessantes à quesito acadêmico quando notamos a interseccionalidade entre moda e raça. Entendo o enviesamento dos estudos de moda, buscou-se construir uma plataforma colaborativa no escopo da construção de conhecimento que têm como objetivo, segundo eles mesmos:


"O objetivo do banco de dados é centralizar e amplificar as vozes daqueles que foram racializados (e, portanto, marginalizados) na moda, iluminar histórias subexaminadas e abordar o racismo em todo o sistema da moda . Além do mais, esta plataforma fornecerá pesquisas práticas e oportunidades de publicação para estudantes, acadêmicos e escritores preocupados com - e investidos em - desmantelar o racismo e trazer histórias críticas à luz. Este é um esforço global que envolve participantes racializados, bem como aliados não racializados. E não vamos parar por aí.

O Fashion and Race and Database fornece um roteiro para mudanças duradouras na indústria da moda , vai oferecer lições e recursos que diversificam a forma como entendemos a moda e vai desenvolver uma plataforma interativa para aqueles que concordam que é hora de assumir narrativas dominantes e insensíveis comportamento na moda ."


Como resolução introdutória, é necessário pensarmos no campo da moda para além do objeto, e identificarmos ele como lugar de criação e ruptura de narrativas, sejam elas de classe econômica ou hierarquizadas pelo poder e status. Entender a própria representação e referência, enquanto processos construtivos de saber e realidade, numa dialética que torna real o reproduzido, ou contesta o posto. Estabelecer em igual importância os quesitos humanos e históricos que o ato de criar ou estudar moda têm, para além do processo industrial de desenvolvimento de vestuário. É através do pensamento crítico que conseguimos entender como o sistema de moda se estabelece, suas hipocrisias e segregações (que ocorrem densamente sob indivíduos no qual classe e raça são marcadores sociais) de forma a propormos uma nova abordagem, transformadora e catalisadora de mudança.


Está na hora de um novo sistema de moda.





Referências


FONSECA, Felipe. Por que os estudos de Moda devem pautar raça? 2020. Disponível em: https://medium.com/felipe-fonseca/por-que-os-estudos-de-moda-devem-pautar-ra%C3%A7a-c557c4972fc0. Acesso em: 05 set. 2021.


HANAYRÁ NEGREIROS. Com Ciência. MODA COMO CULTURA NO BRASIL: DESCOLONIZAR O OLHAR É PRECISO. 2020. Disponível em: https://www.comciencia.br/moda-como-cultura-no-brasil-descolonizar-o-olhar-e-preciso/. Acesso em: 05 set. 2021.


KIMBERLY M. JENKINS. The Fashion And Race Database. Vision Statement. 2021. Disponível em: https://fashionandrace.org/database/vision-statement/. Acesso em: 05 set. 2021.


LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero – a moda e seus destinos na sociedade moderna. São Paulo: Companhia das letras, 1987. LIPOVETSKY, Gilles.


SALIBA, E. T. Perspectivas para uma historiografia cultural. Diálogos, v. 1, n. 1, p. 11-18, 11.







 
 
 

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