Moda, Zeitgeist e Estética: a utilização do iconográfico como ferramenta narrativa
- Mostra Revista
- 2 de set. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 9 de set. de 2021
Reportagem por: Nicolas Santos
A moda é um constante jogo de significações e simbolismo, que imbuí aos objetos do dia a dia significados dentro de um sistema de comunicação visual e estético subjetivo, como que em um jogo de interpretações e relações associativas. É através desse poderoso meio e plataforma, que utiliza de elementos do design e gestalt, que mensagens são potencializadas e transformadas em imagem, atravessando desde a inspiração corriqueira dos/das designers até discursos e narrativas políticas pertinentes à atualidade.
Mesmo sendo considerada uma área mais comercial e industrial, o design de moda não deixa de ter potencialidades inerentes aos seus processos de consolidação imagética de conceitos, tangenciando, por muitas vezes, o campo artístico e político. Instrumentalizando de diversos elementos de comunicação, que vão da forma, cor e textura até a narrativa e ambientação, são construídas e reforçadas problemáticas atuais no cenário global, principalmente por vozes pertinentes na moda, à exemplo de nomes como Kerby Jean-Raymond e Beyoncé.
A comunicação de discursos sociais e de sensações coletivas atravessam o que conhecemos como zeitgeist, conceito e termo alemão que se traduz como “espírito do tempo”, um consenso social que permeia as mentes sem ter sido combinado. Associado a este grande conceito, encontramos um cenário de efervescência política na modernidade, onde a injustiça e o apagamento de identidade e/ou minorias se vê contestada e fortemente combatida.
Essa conjuntura propicia as condições para pautar e externalizar relatos do cotidiano e da sociedade, através das lentes do design de moda, que usa o iconográfico, figurado e lúdico como ferramentas, mas sem distorcer a mensagem e potência transformadora objetivada. O lúdico, a silhueta e a figura permeiam desde a sensação de necessidade de escapismo da realidade, vista em períodos de crise como o que vivemos, até a denúncia do racismo estrutural na sociedade ocidental.
Kerby Jean-Raymond
À exemplo de vozes que amplamente trazem estes discursos para passarela, temos o jovem designer Kerby Jean-Raymond, que à muitos anos já faz um ode a identidade e existência preta em suas coleções. Em sua última coleção, o jovem descendente de imigrantes haitianos e que cresceu em Flatbush - Brooklyn, trouxe uma homenagem aos inventores e personalidades pretas apagadas e invisibilizadas da história norte-americana. Como o próprio designer já declarou "O meu objetivo ao criar coleções é basicamente voltar a nos incluir na história", entrevista ao Highsnobiety.
O designer, que é diretor criativo da grife Pyer Moss, brilhou na semana de alta-costura nesta grande homenagem às figuras históricas, sendo ovacionado pela crítica no detalhismo e construção da narrativa. O desfile, que mesmo tendo que ser remarcado pela chuva, acontecerá na Villa Lewaro, residência da primeira mulher negra milionária dos EUA. O casarão também serviu de ponto de encontro para alguns dos nomes mais importantes do Harlem Renaissance, movimento que influenciou boa parte da produção artística e musical dos anos 1920.
Imagens: Desfile Alta-Costura Pyer Moss Outono/Inverno 2021/2022 | Divulgação: Reprodução.
Kerby utiliza sua plataforma para além das passarelas e mais recentemente divulgou duas iniciativas em colaboração com o grupo Kering, conglomerado de luxo, na qual lançará incubadora de projetos e etiquetas, intitulada Your Friends in New York. O projeto busca apoiar artistas e criadores de moda em suas fases iniciais, principalmente aqueles com vulnerabilidade social, na concretização de projetos.
Beyoncé
Empresária, artista, performer e mais recentemente designer, Beyoncé domina e é referência em todos os campos em que atua, merecidamente. Sua marca de sucesso, Ivy Park, se consolidou no mercado de moda, tendo suas coleções cápsula rapidamente evadindo dos estoques das lojas, mas foi mais recentemente que a narrativa da empresa se ampliou, mais especificamente na sua última coleção.
Ivy Park Rodeo homenageia a história dos cowboys negros norte-americanos, figuras apagadas da história estadunidense por uma clara agenda de invisibilização da população preta. O que não passou despercebido pelos olhos da artista. Assim como Kerby em 2018, que lançara coleção na mesma temática, a texana de Houston decidiu retomar a memória destas figuras, e imprimi-las novamente na visão coletiva.
Em declaração exclusiva à Houston Chronicle, Beyoncé dissera "Depois de entender de onde veio a palavra 'cowboy', percebi o quanto das histórias de cowboys negros, marrons e nativos estão faltando na história americana. Tenho orgulho de representar a cultura de Houston, minhas raízes e todas as pessoas que entendem de Snickers fritos e pernas de peru fritas."
A coleção é uma parceria entre a marca da artista e a Adidas, colaboração de sucesso nos últimos anos.
Segundo William Loren, historiador focado na história afro-americana e escritor de "The Black West", a profissão de vaqueiro fora uma das poucas com vagas abertas para 'homens de cor' após a Guerra Civil, e este fora um dos fatos que provavelmente a inspirara.
Atuando em diversas frentes, e com o fortalecimento da identidade negra, em especial norte-americana, como objetivo, Bey também brilhou com projetos como o álbum Lemonade e o filme Black is King. Sua versatilidade e empenho neste escopo colocam-na como um dos nomes mais influentes dentro do cenário artístico-político.
Em nota mais recente, Beyoncé apoiara através de sua fundação 'BeyGood' o projeto brasileiro "Tem Gente Com Fome" que visa levar alimento à famílias que sofrem de insegurança alimentar e fome. Aqui encontramos outra forma com a qual a empresária se envolve com pautas sociais e visa transformar o mundo.
Para além dos discursos políticos essenciais à nosso tempo, o sentimento geral de desejo de expressão e liberdade potencializado pelo isolamento social e pela ação de redes sociais como Tik Tok, tem contribuído para explorar cada vez mais o figurativo e lúdico enquanto escapismo da realidade. Nas semanas de moda consagradas encontramos um discurso macro, mas é nas marcas menores e mais ligadas às tendências jovens e digitais que se desdobram tendências que tangenciam o surrealismo.
Estéticas denominadas "Dream Core", "Trauma Core" e "Weird Core" são alguns dos novos termos que vem circulando nas redes mostrando a união da ideia, do escapismo e da moda na produção imagética de novas identidades e estilos.
À alguns anos já vemos como essa popularização das redes tem influenciado o olhar estético para com o mundo, o que não seria diferente na área da moda. Desde os filtros do Instagram que proporcionam a chance de alteração facial até os itens de moda puramente estéticos e não usuais, descobrimos um cenário cada vez mais experimental, uma tentativa coletiva de fugir de tudo aquilo que restringe, inclusive o próprio corpo. Instrumentalizado pela figura e pela distorção da silhueta, tudo se mostra possível.
AVAVAV Firenze
Pouco se sabe sobre a AVAVAV, mas o que se tem certeza é de seu sucesso com artistas como Dorian Electra e sua popularização graças as redes sociais. A marca fundada em Florença e comandada por Beate Karlsson se destacou por produzir calçados fantasiosos, que parecem "pés de monstros", daqueles que você vê em filmes infantis como Monsters Inc.
Os produtos parecem sair diretamente de um quadro de Salvador Dalí, pelas formas distorcidas e forte uso de cores. Apesar de não muito ergonômicos, eles são uma representação muito simbólica do desejo de fugir do usual e focar na estética, numa espécie de experimentação inumana.
A marca, que também produz vestuário, caminha entre o minimalismo e o maximalismo, num balanceamento perfeito. Suas peças são reproduzidas poucas vezes e feitas sobre demanda, evitando desperdício de recursos humanos ou de matéria-prima. Seus tecidos por vezes são reutilizados de uma coleção para outra, caso apresentem sobras de estoque.
Imagens: Coleção 2020/2021 da AVAVAV Firenze | Reprodução: Divulgação.
WINDOWSEN
Fundada por Sensen Lii, estudante da Royal Academy of Fine Arts Antwerp, a WINDOWSEN representa um sonho surreal e futurístico, que utiliza da moda para criar uma nova realidade por nós jamais imaginada. O designer chinês, que mudou para Bélgica seguindo o desejo de estudar moda, é referência na idealização de uma estética iconográfica, que em seu terceiro ano de faculdade já se consagrava como digna de desfilar na semana de moda de New York.
O projeto de Sensen Lii intitulado VFiles fora tão emblemático que se transformara em sua identidade enquanto criador de moda. Vestindo figuras como Doja Cat em seu videoclipe Need to Know, mostra que o figurativo tem lugar no imaginário coletivo, desde uma plataforma enorme até a figura "alien" representada e personificada em suas criações. Sua estética é fortemente influenciada pela dramaticidade de seus anos de teatro e figurinismo.
Imagens: Coleção Sporty-Couture Windowsen Fall 2021. | Reprodução: Metal Magazine.
Como tudo na moda, à sempre um espaço de descoberta e incorporação de tendências pelas grandes grifes, o que não seria diferente com o teor lúdico e iconográfico. Apesar de encontrarmos mais atualmente estes elementos em marcas menores e mais experimentais, ainda há grandes empresas que tentam tocar ou tangenciar este lugar artístico e iconográfico na esperança de comunicar uma narrativa potente.
O iconográfico tivera seu pico nas décadas de 80 e 90, nas quais as grifes experimentavam estéticas, silhuetas e temáticas sem preocupação em até que ponto referenciavam ou homenageavam culturas e conceitos imagético, o que muitas vezes se sobrepunha a um roubo de identidade de grupo e esvaziamento de discursos. É importante refletir até que ponto a criação não é apenas uma tomada de uma narrativa que não inclui o designer, que vai para além do design e torna-se uma identidade e discurso no qual não se tem uma propriedade e experiência de representar.
Marcas como Moschino, sob a direção de Jeremy Scott, tem trabalhado, seguindo o legado de seu fundador, os objetos do cotidiano na perspectiva da Pop Art, ou da desconfiguração da forma e do conceito. A marca se propõe como um grande jogo entre moda, forma e comercial, explorando temáticas que vão do circo à cultura bdsm.
Esta forma de construir dentro do lúdico pelas grandes marcas também pode ser vista na última coleção de Alta Costura da Dior, que ao trabalhar uma narrativa em fashion film acerca das personas do baralho de Tarot, envia uma mensagem de esperança e jornada. O lúdico, além do vestuário, se estende para a construção audiovisual, e pela ação da direção de arte que enriquecem o projeto.
Referências
HANNAH SULZBACH (Berlin). Numero Berlin. Between Maximalism and Minimalism: AVAVAV Firenze. 2021. Disponível em: https://www.numeroberlin.de/2021/04/between-maximalism-and-minimalism-avavav-firenze/. Acesso em: 31 ago. 2021.
JULIANA NEIRA. Design Boom. AVAVAV unveils four-toed monstrous boots made from leftover luxury scraps. 2021. Disponível em: https://www.designboom.com/design/avavav-four-toed-monstrous-boots-02-15-2021/. Acesso em: 31 ago. 2021.
KRISHA PATEL. The Luxury Abode. The Brand History of Moschino. 2021. Disponível em: https://www.luxuryabode.com/blog/the-brand-story-of-moschino/artid856. Acesso em: 31 ago. 2021.
LUIGI TORRE (São Paulo). Elle Brasil. Pyer Moss faz desfile histórico de alta-costura em Nova York. 2021. Disponível em: https://elle.com.br/moda/pyer-moss-alta-costura-inverno-2021. Acesso em: 31 ago. 2021.
LUKE SMITH. Dazed. The VFiles-approved Antwerp designer mixing streetwear and couture. 2018. Disponível em: https://www.dazeddigital.com/fashion/article/41758/1/vfiles-antwerp-designer-sensen-lii-streetwear-couture-new-york-fashion-week. Acesso em: 31 ago. 2021.
RAKECHE NASCIMENTO (Brasil). Mundo Negro Inf.. Com Beyoncé participando da campanha, Ivy Park anuncia nova coleção inspirada em 'Black Cowboys'. 2021. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/com-beyonce-participando-da-campanha-ivy-park-anuncia-nova-colecao-inspirada-em-black-cowboys/. Acesso em: 31 ago. 2021.





































Comentários